O presente artigo objetiva traçar um paralelo acerca do requisito da confissão para a análise do cabimento do Acordo de Não Persecução Penal.
Antes de prosseguirmos com as reflexões propostas, contudo, consideramos de suma importância registrar, de forma resumida, informações sobre o ANPP. O Acordo de Não Persecução Penal é um relevante instrumento de política criminal e representa uma das maneiras de tornar o sistema de justiça penal brasileiro menos moroso e mais ágil e eficiente.
Em resumo, o Acordo de Não Persecução Penal não garante aos acusados os princípios do contraditório e da ampla defesa, visto que o procedimento ocorre no âmbito do Ministério Público, órgão acusador, caracterizando-se, portanto, como parcial. O Ministério Público argumenta que, ao ser proposto antes do oferecimento da ação penal, as condições estipuladas no ANPP não possuem natureza punitiva. Contudo, divergimos dessa perspectiva, como abordaremos mais adiante.
Parte da doutrina argumenta que a obrigatoriedade da confissão formal e circunstanciada como requisito para a proposta do acordo de não persecução penal é emblemática. Sem esta confissão, o acordo não se concretiza. Sandro Carvalho Lobato de Carvalho esclarece que a confissão deve ser circunstanciada, isto é, minuciosa e detalhada, abordando todas as especificidades da conduta criminosa. Confissões parciais não são aceitas, sendo vistas por alguns como inconstitucionais, uma vez que podem representar a obtenção de prova ilícita.1 .
Quanto à confissão, acreditamos que sua exigência induz o investigado à autoincriminação. Se houvesse a persecução penal, o investigado teria o direito de se defender e, possivelmente, não ser condenado. Dessa forma, a exigência da confissão fere a prerrogativa da não autoincriminação, prevista no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal e no art. 8º, §2, alínea g, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n.º 678/1992). 1 CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de.
Questões práticas sobre o acordo de não persecução penal, São Luís: Procuradoria Geral de Justiça, 2021.
Do mesmo modo, o direito ao silêncio está previsto no art. 5º da Constituição Federal. Analisando sob a perspectiva da inconstitucionalidade da exigência da confissão formal e circunstanciada no Acordo de Não Persecução Penal, o jurista Guilherme de Souza Nucci argumenta que tal confissão prejudica o investigado. Vejamos: Confissão formal e circunstanciada: demanda o dispositivo uma confissão do investigado, representando a admissão de culpa, de maneira expressa e detalhada. Cremos inconstitucional essa norma, visto que, após a confissão, se o acordo não for cumprido, o MP pode denunciar o investigado, valendo-se da referida admissão de culpa. Logo, a confissão somente teria gerado danos ao confitente.2 Pondera Rodrigo Leite Ferreira Cabral, por sua vez, que a garantia ao silêncio, mesmo sendo referida no texto constitucional como forma de proteção apenas ao preso, protege todo investigado, indiciado ou acusado em um processo penal, não sendo necessário ele estar recluso3 .
Dentro desse espírito, outro argumento forte na inconstitucionalidade da confissão é de que o Parquet poderá usá-la como elemento de corroboração das provas produzidas em interrogatório (art. 155, do CPP). Por tais fundamentos, evidencia-se que a confissão acaba por menoscabar o princípio constitucional do direito ao silêncio (art. art. 130-A, §2º, I, da CF).
Outro ponto que acarreta prejuízos ao investigado é o fato de que o descumprimento às condições do ANPP incide como justificativa para a negativa da concessão ao benefício da suspensão condicional do processo.
No entanto, é claro que o investigado pode não concordar em confessar, mas, caso o fizer, ficará sem o benefício do Acordo de Não Persecução Penal. A essência dessa justiça negociada (ANPP) não deveria ser a discussão sobre a culpa do investigado, mas sim, igualar-se aos institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal, os quais dispensam a confissão do suposto autor do delito para a sua concessão. 2 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado, 19° edição, São Paulo: Forense, 2020, p. 222- 223. 3CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal, 2ª ed. Salvador: Juspodivum, 2021, p. 131.
Percebe-se que o ANPP é concebido como um benefício tanto para o investigado quanto para o sistema judicial brasileiro, tendo em vista a desjudicialização, evitando assim a sobrecarga do Poder Judiciário e tornando-o menos oneroso e moroso. Portanto, se a lei não retroage em detrimento do réu, por que o ANPP deveria prejudicá-lo, exigindo sua confissão como condição para sua celebração? Está claramente evidente que a necessidade de confissão do investigado para a celebração do ANPP deve ser repudiada, uma vez que viola os princípios constitucionais mencionados neste artigo.
Em consonância com o defendido neste artigo, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso publicou, em 2023, a Recomendação Conjunta Nº 02/2023- PGJ/CGMP, a qual dispõe sobre a prescindibilidade da confissão como requisito para o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal. A referida Recomendação leva em consideração, para a dispensa da confissão, nos casos analisados pelo MP, o princípio do nemo tenetur se detegere (direito a não autoincriminação), bem como defende que é princípio basilar do ordenamento jurídico a Supremacia da Constituição, segundo o qual as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas sempre à luz da Constituição Federal.
Por fim, com o devido respeito, percebe-se que a obrigatoriedade da confissão como requisito para o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal é uma mera vaidade da mentalidade inquisitorial que permeia o processo penal brasileiro.4