A vida no Serviço Social oportuniza alguns diálogos que nos acompanham pela vida. Num destes, cansado, já havia feito a investigação, sento-me e logo vem ao meu lado um menino, um adolescente. Sem qualquer formalidade, sem necessidade de apresentação, começamos a entabular uma conversa. Nesses momentos em que não se tem qualquer obstáculo entre as partes o diálogo flui com mais naturalidade e as informações trocadas ganham autenticidade. Um senhor que o tempo se encarregou de levar os cabelos e um jovem que cresce tão rápido quanto um dia, num passado não tão recente, cresciam. Era o encontro de ontem com o amanhã.
Falou-se de tudo. Quem éramos, o que pretendíamos e o que fazíamos no dia a dia. Curiosidade de um lado, interesse de conhecer do outro. Ambos aprendendo com o outro. Numa dessas contei das dificuldades escolares até a formação em nível superior, inclusive, das coisas que tive de abdicar e das alegrias e frustrações da profissão. Riu muito. Disse que pensava que eu era “CDF”. Pensei: “Lá vem esse moleque com essa linguagem”. Ainda que não se tenha preconceito com as variações linguísticas, algumas coisas eram estranhas a mim.
Confiança adquirida, o menino narrou sua vida, as dificuldades de seus pais e porque deixou a escola. Ainda que, tenha controle, não sei que sentimento me acometeu, talvez um misto de angústia, tristeza e revolta. Nessas horas, o conhecimento liberta e percebi mais claramente o papel que estava a desempenhar.
Naquele jeito todo peculiar, o menino nem se esforçou para narrar que seus pais não eram casados. O pai era pedreiro. Trabalhava muito. Saía cedo e retornava tarde, cansado. A sua mãe cuidava da casa. Tinham uma vida boa. Nessa época tinha orgulho de ser um dos melhores da sala de aula. Nos finais de semana era uma festa. Todos da família se reuniam. Era uma algazarra.
Um dia não teve festa. Todos estavam lá. Não era a casa da família. A mãe chorava muito. Não entendia direito, quando alguém me disse que meu pai tinha se acidentado. O pai era muito forte, pensei que logo estaria bom, mas, a tristeza de todos deixava o menino preocupado. Queria ver o pai. Não deixaram.
Notícia ruim. O pai não poderia mais trabalhar. Nessa hora, conta o menino, o mundo desabou. Não sabia o que fazer, mas, passados uns tempos, as coisas foram ficando claras: “eu precisava trabalhar”. A mãe se esforçava entre os afazeres domésticos, os cuidados com o marido e atenção ao filho, mas as economias iam se esvaziando. De repente, “eu precisava trabalhar, mudar de turno. No início até que foi bom. Gente nova me fazia esquecer o sofrimento e o cansaço”. E, vieram as avaliações, diz o menino, e as notas despencaram. Ainda que tentasse recuperar, parecia impossível ou muito difícil. Com os olhos tristes o menino fala: “Foi minha primeira decisão. Não tinha escolha. Precisei parar de estudar”.
Existe na sociedade brasileira a crença de que, quanto mais precoce se entrar no mercado de trabalho, melhores são as possibilidades de formação profissional. Até pode ser. Uma pesquisa social, contudo, pode demonstrar o quão decisivo foi a entrada precoce na atividade laboral. É possível discutir o valor da formação profissional, mas, é inegável que uma pessoa dispensando 4, 6 ou 8 horas diárias para o trabalho tende a ter menos tempo para os estudos. Entende-se estudo não apenas a jornada escolar, mas, também as atividades extraclasse, a leitura de livros sugeridos pelo professor, participação em grupos de estudo, entre outras possibilidades pedagógicas.
O mercado precisa de peças para reposição. Não há necessidade de que sejam únicas, mas, generalistas. Assim, propaga-se a ideia de que temos de ocupar o tempo de jovens com trabalho. Uma pesquisa social poderá indicar que o tempo seria mais bem ocupado com ensino em tempo integral, com uma plêiade de atividades complementares que abririam um leque, no futuro, de opções em termos de trabalho e não seria apenas a necessidade a determinante para aceitar qualquer trabalho. Enquanto isso, continua-se a justificar a evasão como desinteresse do aluno ou a escola, sistema de ensino e professor.
Alguns anos como professor, estudioso e novamente aluno, desta vez em Serviço Social, me permitiram refletir e opinar sobre o processo de evasão escolar historicamente tendo a responsabilidade atribuída ao aluno. Sem a pesquisa social não se conhece o aluno e as determinantes que o levam a tomar decisões, muitas vezes, contrária a seus interesses futuros. Nem todos os alunos evadidos queriam se distanciar da sala de aula.
A realidade social do Brasil impõe escolhas pela sobrevivência. Essa deve ser a maior contribuição das reflexões que realizei. O aluno imaturo, necessitado, fará escolha pelo trabalho. Trata-se de uma vantagem inicial, mas ele não tem elementos suficientes para refletir e, contra si, a realidade social pressiona a optar pelo meio de sobrevivência. Sem a criação de condições para que o aluno permaneça na escola, sem perecer, ele irá para o trabalho e se evadirá da escola.
Lázaro Donizete Da Silva é graduado em Letras (UNIVAG), Serviço Social (UFMT), especialista em Educação Especial e Gestão Pública Municipal (UAB/UFMT).